Medidas indispensáveis para o médico que se depara com um paciente Testemunha de Jeová. #ProfilaxiaJurídica
Recentemente, uma equipe médica de um grande hospital nos procurou para tratar de um caso bastante importante. Um menino de apenas 9 anos de idade, sofreu um grave acidente, com ácido de bateria de caminhão, tendo queimaduras de 2º e 3º graus por todo o corpo e também uma grande laceração no braço. Para fazer a limpeza e desbridamento (retirada das cascas das feridas para que se renovem e ajudem na cicatrização) dos ferimentos, o menino precisa ser submetido a procedimento anestésico, diariamente.
Trata-se de um caso gravíssimo, onde a criança precisa passar por procedimento cirúrgico para se possa fazer enxertos de pele em seu braço e ele não fique com deformidades ou limitações de movimentos. Caso ele não faça isso, ele também vai passar muitos meses internado, correndo o risco, inclusive de ter uma séria infeção hospitalar e, até mesmo, ter o braço amputado.
Entretanto, ainda que diante de uma situação preocupante como essa, os pais da criança não autorizam o procedimento de enxerto, pois pelo quadro que o menino se encontra, ele vai precisar fazer uma infusão de concentrado hemácias ou transfusão de sangue.
Pois bem. Após conversa com a Promotoria da Infância e Juventude do Rio Grande do Norte, tivemos a informação de que pouquíssimos são os casos de pedido judicial de suprimento de vontade dos pais para autorização de procedimento médicos dessa natureza. A promotora informou que, em dez anos como promotora nessa área, apenas dois foram os casos que ela atuou.
A equipe médica ainda está em negociação com os pais da criança, mas, muito provavelmente, deverá ser judicializado muito em breve.
Então, trata-se de uma questão que demanda bastante atenção, e talvez por retração da classe médica, é pouco discutida perante o Poder Judiciário.
É responsabilidade da equipe médica buscar por uma solução em prol da criança.
A Resolução nº 2232/2019 do Conselho Federal de Medicina trata da matéria. Mas, ainda assim, a discussão é cercada de polêmicas.
Para esse caso específico, temos o artigo 4º da Resolução, que assim determina:
Art. 4º Em caso de discordância insuperável entre o médico e o representante legal, assistente legal ou familiares do paciente menor ou incapaz quanto à terapêutica proposta, o médico deve comunicar o fato às autoridades competentes (Ministério Público, Polícia, Conselho Tutelar etc.), visando o melhor interesse do paciente.
Então, não restam dúvidas de que o interesse da criança deve ser respeitado, visando o melhor resultado para a saúde dela, ainda que não haja um risco iminente de morte, devendo a equipe médica se esforçar para buscar pela autorização, ainda que judicial.
É importante pontuar que se, em um caso como esse, a equipe médica nada fizer, a criança pode, no futuro, quando tiver atingido a maioridade, buscar por uma reparação judicial.
Sob o ponto de vista ético
O principio médico da beneficência reza que o profissional da medicina deve sempre buscar o melhor para o seu paciente, fazendo de tudo para salvar sua vida e sua saúde – que são direitos garantidos constitucionalmente.
O que se questiona aqui é o direito, também fundamental, também previsto na Constituição Federal, à crença religiosa. É importante ressaltar que esse direito não está sendo desmerecido. Mas, fazendo-se uma ponderação, resta evidente que o direito à vida e à saúde são mais importantes e, no caso de uma criança, que ainda não tem autonomia para decidir, deve-se buscar por salvaguardar o que lhe for mais precioso.
O Código de Ética Médica, em seu artigo 11, determina:
Art. 11. Em situações de urgência e emergência que caracterizarem iminente perigo de morte, o médico deve adotar todas as medidas necessárias e reconhecidas para preservar a vida do paciente, independentemente da recusa terapêutica.
Essa questão tem sido bastante discutida. E diversos são os posicionamentos.
A nossa opinião (que é sujeita a debate – esteja livre para comentar abaixo o seu posicionamento) é: para procedimentos eletivos, não resta dúvida quanto à autonomia do paciente. Caso o paciente não queira ser submetido a uma cirurgia, ele deve ter liberdade de fazê-lo. Ele precisa estar ciente de todos os aspectos médicos e, por isso deve ser assinado um termo de consentimento informado e esclarecido, com mais a assinatura de duas testemunhas. Ele precisa estar no gozo de todas as suas faculdades mentais. Conforme redação do artigo 3º da Resolução 2232.
Mas, no caso de urgência e emergência, onde o paciente não tem capacidade para decidir, a vida e a saúde devem ser consideradas primeiro - independentemente de autorização judicial.
Sob o aspecto criminal.
É preciso reforçar que a omissão também caracteriza conduta caracterizada como crime (artigo 135 do Código Penal). E, caso o médico decida agir, ele também pode estar salvaguardado – conforme redação do artigo 146, §3º, I do Código Penal, de 1940, ainda vigente.
Art. 146 - Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, ou depois de lhe haver reduzido, por qualquer outro meio, a capacidade de resistência, a não fazer o que a lei permite, ou a fazer o que ela não manda:
Pena - detenção, de três meses a um ano, ou multa.
§ 3º - Não se compreendem na disposição deste artigo:
I - a intervenção médica ou cirúrgica, sem o consentimento do paciente ou de seu representante legal, se justificada por iminente perigo de vida;
Então, para salvaguardar a vida do paciente, o nosso posicionamento é de que não configura constrangimento ilegal, não devendo o médico ser punido nessa seara criminal.
Quem tem legitimidade para ajuizar a ação judicial?
Trata-se de ação para suprimento de vontade, ou seja, é uma ação judicial declaratória de direito, onde o juiz, no lugar dos representantes legais, vai determinar qual é o melhor posicionamento que deve ser destinado ao paciente.
Então, sob essa ótica, nosso entendimento é de que, em caso de recusa dos representantes legais, são legitimados para ingressar com a ação: o médico ou o chefe da equipe médica que assiste o paciente. A pessoa jurídica do hospital também tem legitimidade - houve um caso de uma maternidade em Goiás. O Ministério Público e qualquer terceiro interessado (um companheiro, por exemplo) também costumam ajuizar ações desse tipo.
Conclusões:
Então, em síntese, se o paciente for maior de idade, capaz de decidir por sua vida, ele pode sim se recusar a se submeter a procedimentos médicos. Se a situação for de urgência ou emergência e o paciente não estiver no gozo de suas faculdades mentais, ele deve ser submetido ao ato médico, ainda que isso implique em realização de infusão de hemácias, ou de hemotransfusão.
Caso o paciente seja menor de idade ou incapaz (curatelado), em situação de urgência e emergência, o médico deve decidir e, em caso de procedimentos eletivos, se os representantes legais do paciente não autorizarem o procedimento, ele deve buscar por suprimento judicial.
Em caso de paciente menor de idade, médico, ou a equipe médica, devem também buscar por autoridades competentes (como também determina a resolução 2232 do CFM), Ministério Público, Conselho Tutelar, OAB, etc.
Situações mais complicadas podem acontecer, merecendo maior debate, como, por exemplo, aquela na qual a pessoa já tem idade suficiente para entender o que se passa na sua vida mas ainda não atingiu a maioridade. Por exemplo, uma adolescente de 17 anos de idade que prefere não realizar uma transfusão de sangue, colocando sua vida em risco. Nesse caso, é preciso uma análise mais minuciosa, devendo o juiz levar em consideração todos os fatores individuais e sociais que cercam a paciente.
O importante é que, quando se deparar com um caso assim, não deixe de atender um menor ou um incapaz. Faça como fez essa equipe médica e procure por orientação jurídica especializada, ou pelo Ministério Público, Conselho Tutelar, etc.
Como sempre, estamos à disposição para eventuais questionamentos.
Considere compartilhar esse texto. Assim, a informação chegará para mais médicos, que precisam estar preparados.
Muito obrigado.
Renato Dumaresq OAB/RN nº 5.448